Covid-19 Texto II
MEDIDAS PROVISÓRIAS nºs 927 e 928/2020-CRISE COVID-19
No dia 22/03/2020 foi editada e publicada a Medida Provisória nº927 no DOU , já aguardada, que regulamenta as questões trabalhistas no meio da crise provocada pelo Covid-19. A MP surge em um cenário de incertezas, tanto para as pequenas e médias empresas quanto para os trabalhadores, afinal o que fazer e como fazer no meio de uma crise mundial de dimensões imprevisíveis. Apesar de apresentar muitos pontos, que poderão ser questionados sob o ponto de vista da conformidade constitucional, é certo que a MP mostra-se adequada ao regime de urgência e relevância do ponto de vista formal, porém seu conteúdo deixou muito a desejar do ponto de vista da estabilidade e equilíbrio esperados.
O ponto focal da Medida Provisória pareceu proteger exclusivamente a empresa, permitindo uma flexibilização visivelmente in pejus para a grande massa de trabalhadores e por um meio até mesmo inovador no cenário do Direito, pela via da autonomia individual, ou seja, por meio de um acordo entre empregado e empregador de discutível validade em tempos de forte crise humanitária. Na contramão de outros países, o Brasil optou pela neutralidade, delegando aos contratantes a capacidade de negociação em tempos de comprometimento de qualquer autonomia individual. A Medida Provisória tem trinta e nove artigos, que abordam medidas ou alternativas para a crise, decorrente da paralisia da atividade econômica em meio à crise do Covid-19. Dentre elas estão as medidas do teletrabalho, banco de horas, antecipação de férias individuais e coletivas, adiamento do recolhimento do FGTS por três meses, suspensão de medidas de fiscalização e a mais radical de todas, a suspensão do contrato de trabalho sob o pseudo título de “aperfeiçoamento profissional”, com a possibilidade do empregado ficar sem receber nada durante quatro meses. Vamos à análise dos principais pontos.
O art.1º, parágrafo único, equipara a calamidade gerada pelo Covid-19 ao motivo de força maior. Tal equiparação não é esvaziada de sentido, pois abre a possibilidade de aplicação de um instituto regulado pela CLT. A situação de força maior prevista no art.501, da CLT. O motivo de força maior é todo acontecimento externo, que torne impossível ou extremamente oneroso o cumprimento das obrigações, como a situação atual. O art.501, caput, da CLT o define como “acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente. Relevante é o preconizado no §2º, do art.501, da CLT, que enfatiza que apenas poderá se valer dos efeitos da força maior quem for afetado financeiramente de forma substancial, afastando os oportunistas deste benefício. Este regime tem como efeitos a possibilidade, no caso de extinção da empresa ou estabelecimento, do pagamento da indenização pela metade (art.502, da CLT) e redução dos salários até 25% ( art.503, da CLT) pelo tempo da força maior. Com isto , ao se aplicar o regime de força maior do art.501, da CLT, em tese, os empresários terão estes benefícios. Digo em tese, porque a redução salarial por esta via é , ainda, muito discutível por força de preceito constitucional , o princípio da irredutibilidade salarial ( art.7º, inciso VI) , que determina que o único meio seria a via da autonomia de vontade coletiva, ou seja, o caminho da negociação coletiva, onde a igualdade de forças é mais próxima do ideário de Justiça. Isto porque o que está em questão é a flexibilização dos principais pontos do contrato de trabalho, o salário e a jornada. O entendimento majoritário, portanto, é no sentido de que o art.503 da CLT não teria sido recepcionado pelo texto constitucional, sendo que apenas a sua motivação poderia ser utilizada para legitimar uma redução salarial pela via da negociação coletiva no âmbito da categoria ou da empresa. Há, contudo, a possibilidade de se admitir que não haveria redução salarial na hipótese desta ser acompanhada pela redução proporcional da jornada, como mencionado pelo jurista Dr. Lúcio Munhoz ao citar o exemplo da OJ nº244 da SDI1 do TST, que trata da redução da carga horária do professor, desde que não haja alteração do valor da hora aula, e seja fundamentada na redução do número de alunos. Nestas situações seria defensável que, por meio de um acordo individual entre empregado e empregador, pudesse ocorrer a redução salarial proporcional, na forma do art.2º, da MP. No que tange às verbas resilitórias, o empregador pagaria de forma integral as verbas referentes às férias vencidas e proporcionais, acrescidas de um terço, gratificação natalina e a redução incidiria sobre a multa de 40% do FGTS, que passaria ao percentual de 20%. O aviso prévio pela motivação do despedimento não seria devido, porquanto o motivo de força maior caracteriza-se por sua própria imprevisibilidade do acontecimento. Há, também, os que defendem o enquadramento da situação do coronavírus na Teoria do Fato do Príncipe- factum principis -do art.486, da CLT, com a transferência da responsabilidade pelo pagamento da multa de 40% para o Estado, seja pela diversidade de entendimentos dos Estados da Federação, seja pela interdição não ser total. Particularmente não vejo a proibição de abertura dos estabelecimentos como um ato de responsabilidade do Estado, porque baseado em acontecimento imprevisível, fortuito, da possibilidade de colapso do sistema de saúde pública pela rápida propagação de um vírus. Não foi o Estado personificado no poder público que deu causa a pandemia, sendo esta tão imprevista para o mesmo quanto para o particular, atingindo toda a coletividade.
Concluo , portanto, que o judiciário não ficará insensível a esta realidade, mas não podemos deixar de ponderar que há incertezas do ponto de vista jurídico. O mesmo se diga com relação ao art.2º da MP, que em uma redação confusa disse menos do que deveria dizer ou nada disse. O preceito legal estabelece que as partes possam celebrar um acordo individual escrito a fim de garantir a permanência do vínculo, que terá preponderância sobre as demais fontes de trabalho, respeitados os limites estabelecidos na Constituição. Ora, se o objetivo foi estabelecer uma estabilidade de emprego, resta evidente que toda a mudança benéfica se sobrepõe a imperatividade mínima da lei, sendo despicienda essa proposição. Na verdade a real intenção que parece advir do texto era a possibilidade de redução de direitos com a previsão de uma cláusula compensatória de estabilidade desde que fossem observados os direitos mínimos previstos no art.7º, da CRFB/88. O art.2º da MP pretende o estabelecimento de uma contrapartida a exemplo do art.611-A, §3º, da CLT. A inversão da hierarquia das fontes é que chama a atenção , tendo em vista que a Constituição admite a flexibilização por meio de acordo e convenção coletiva de trabalho, o mesmo ocorrendo com o art.611-A da CLT. Agora a substituição de uma norma jurídica ou convenção coletiva por um acordo individual é algo inédito na história do direito do trabalho, sendo difícil a defesa da sua constitucionalidade.
O artigo terceiro fala dos meios e instrumentos que poderão ser lançados para o enfrentamento da crise, tais como teletrabalho, férias, banco de horas, suspensão para qualificação profissional e ,de novidade ,temos suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde do trabalho e diferimento do recolhimento do FGTS. Da conjugação deste preceito com o art18º podemos concluir que o governo está dando uma carta branca para os empregadores estabelecerem a suspensão dos contratos para “aperfeiçoamento” em tempo de crise , sem a necessidade da negociação coletiva como exigido pela regulamentação genérica do art.476-A, da CLT, e com a possibilidade de nenhuma pagamento, mas mera esmola rotulada de “ajuda compensatória mensal”, o que vem na contramão da postura assumida por outros países do mundo. Tal opção mostra-se incompatível com um Estado social, pois impõe aos mais vulneráveis sacrifício desproporcional. Lembrando-se que a mão-de-obra mais qualificada, com maior poder de negociação, certamente terá em seu benefício o teletrabalho, sendo que a mão-de-obra mais carente e desqualificada será premiada com a qualificação, sem qualquer patamar mínimo de retribuição, o que é inconstitucional à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana e da irredutibilidade salarial (art.7º, inciso VI, da CRFB/88). Receberá a grande massa dos trabalhadores do Estado a autorização para sobreviver à crise, sem os meios mínimos, ficando refém da boa-fé e consciência de cada empregador. A medida é inédita e representa um grave risco social, trazendo mais litigiosidade e incertezas do que a própria ausência da Medida Provisória. Embora haja previsão de acordo, resta evidente que o trabalhador neste cenário não terá nenhuma possibilidade de diálogo social. A inconstitucionalidade é patente, porque impõe ao trabalhador um regime incompatível com o momento, permitindo a redução do salário a zero, sem qualquer negociação coletiva prévia, gozo de férias em situação de isolamento social e sem incremento salarial ( adicional de um terço e pagamento do salário ao final do gozo). Ora, se a questão é de saúde pública caberia ao Estado a complementação ou assegurar um rendimento mínimo. O papel do Estado é regulamentar e não desregulamentar em tempos em que não há igualdade mínima. Ante a repercussão negativa deste artigo ele acabou sendo revogado pela MP nº928. Subsistiu íntegro o art.3º, inciso VII, da MP nº927, continuando a possibilidade da suspensão do contrato para qualificação do trabalhador por um período de dois a cinco meses para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional, na forma do art.476-A, da CLT, que exige a previsão em convenção ou acordo coletivo de trabalho, além da expressa anuência do empregado. Nas categorias com convenções em vigor, com esta previsão, poderá ser uma saída negociada com o trabalhador. No período de suspensão é conferido ao trabalhador o direito aos benefícios voluntariamente concedidos pelo empregador como, por exemplo, cestas básicas e plano de saúde, podendo, ainda, receber uma ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial ( art.476-A,§3º, da CLT) . Da parte do Estado é defensável, com a revogação do art.18 da MP, a percepção com base no art.3º, inciso VII, de uma bolsa de qualificação, regulamentada pela lei do seguro-desemprego (art.2ºA, da lei nº7.998, de 11/01/90).
O artigo 4º trata do teletrabalho no estado de calamidade pública, excepcionando a regra da consensualidade na mudança do regime de trabalho presencial para o teletrabalho. Autoriza-se a mudança de forma unilateral a critério do empregador e independentemente de acordo individual ou coletivo e do registro prévio desta alteração no contrato de trabalho, o que é exigido no art.75-C,§1º, mediante aditivo contratual. Será suficiente no período de calamidade pública a mera comunicação por escrito, admitindo-se a transmissão pela via eletrônica, com antecedência mínima de 48 horas. O parágrafo primeiro reproduz o conceito clássico do teletrabalho do art.75-B, da CLT, enfatizando a dispensa do controle de jornada do art.62, inciso III, da CLT. O §3º aborda a questão da responsabilidade pelo fornecimento, manutenção e despesas decorrentes do equipamento tecnológico para a execução do teletrabalho, prevendo o ajuste entre as partes por meio de contrato escrito prévio ou no prazo de trinta dias, contado da data da mudança do regime. O direito comparado tende a transferir para o empregador tais despesas, considerando que são legítimas ferramentas do trabalho. O §4º estabelece duas opções para a situação do trabalhador não possuir tais equipamentos. Na primeira hipótese o empregador forneceria este equipamento em regime de comodato, pagando pelas despesas (contas de luz e telefone) , as quais não teriam natureza salarial ante o caráter indenizatório destas. Não havendo esta possibilidade o trabalhador ficaria à disposição do empregador, sendo assegurado o salário. O § 5º dispõe sobre o óbvio e até em contradição com o fato do teletrabalhador está excluído do regime de controle de jornada. Por fim, o art.5º permite o regime do teletrabalho para estagiários e aprendizes, o que não era pacífico pelas dificuldades naturais das avaliações dos superiores destes trabalhadores quanto à forma de execução do trabalho e o inter-relacionamento destes trabalhadores no ambiente de trabalho. Sem dúvida o teletrabalho, como nova forma de organização do trabalho com a flexibilização dos dois principais elementos do contrato de trabalho ( tempo e espaço), é uma das melhores alternativas para a paralisia da economia nesta pandemia. Infelizmente não são todas as atividades suscetíveis de serem realizadas à distância por meio de instrumentos telemáticos. Normalmente o teletrabalho é destinado aos trabalhadores de maior qualificação, que não integram a grande massa dos trabalhadores brasileiros, não resolvendo de forma substancial o problema do desemprego estrutural, produto da crise denominada covid-19. A possibilidade de suspensão dos contratos para qualificação, de outro norte, exige a oferta de cursos e a regulamentação pela via coletiva, não sendo uma realidade afeta aos grandes empregadores do Brasil, que são as pequenas e médias empresas as mais afetadas economicamente com a paralisia econômica. Os caminhos mais viáveis são limitados no tempo, pois envolvem a antecipação de férias e a criação de um banco de horas, mas são alternativas com maior segurança jurídica.